Parte 2: Quanto dura um pôr do sol?
Terminei o serviço. Acabara de plantar o segundo pé de romã na beira do lago. Recolhi as ferramentas e levei-as até o tanque para lavar os resíduos de terra. Colher, faca, enxadão e tesourão de aparar grama. Depois voltei até à varanda para observar a paisagem. Eles estavam lá: pequenos, mas imponentes. Daqui a um ano já estarão floridos e fornecendo uma pequena sombra “e eu já terei esquecido aquele pirralho!...”:
-Nem pensar, cara! Ontem à tarde eu te contei o que queria saber. Você perguntou e eu respondi. Tudo, tudo. Eu era o garoto do seu álbum. E o que aconteceu? Isso!... Você me veio em seguida com outras promessas. Pois voltei! Agora, vai ser assim: só com papel passado, documento assinado, preto no branco!... - eu já não entendia mais nada. O garoto estava ali, na minha frente. E o pior: Eu não estava de olhos fechados. Não podia ser! “Será que eu estou num sonho? Não! Acabei de plantar aquelas duas mudas de romãs...”
-...E fica tranqüilo que não é sonho, não! - ele disse, adivinhando meus pensamentos. - Você está me vendo com a sua mente. Eu estou lhe falando diretamente nos ouvidos!...
Eu começava a entender. Uma luz começava a brilhar...
- ...Isso mesmo, no fim do túnel! - arrematou o guri, completando os meus pensamentos. “Será que eu ...”
-Não, não está ficando louco não. Por enquanto, não! Mas eu me lembro: numa de suas leituras você disse qualquer coisa assim “tu te tornas...”
- “eternamente responsável por aquilo que cativas”-arrematei: Antoine de Saint Exupèry. E daí? Li isso ainda pequeno tinha uns dez ou doze anos.
-Eu me lembro.
-Como assim?
-Você leu pra mim. Eu prestei bem atenção. Me comovi. Senti que meu sangue era azul! Mas qual! A partir daí começaram suas promessas para comigo. Embrulhão! Seja homem!...
Tentei interromper. Mas parecia que tinha ligado uma vitrola:
-Depois desse tempo você foi mais longe ainda. Queria consertar o mundo. Queria ser um modelo a ser imitado, o tal! Um grande embusteiro, isso sim. Percebi depois. Afastou-se de mim, deixou-me na estrada, seguiu outro rumo e agora está aí, parado, olhando a paisagem...
E eu olhava mesmo! Como que hipnotizado. Do lado de lá, além do lago, as montanhas faziam sombras entre si, num lento entardecer. Aquela conversa já durava horas. E o sol se recusava a ir embora naquele dia. Arrisquei, então:
-Se eu não estou louco, ainda, conforme afirma, você deve ser...digamos...
-Continua, cara. Você está quente! Chicotinho ...
-...queimado! Falei primeiro, seu bobão... - Percebi que eu até me soltava naquele diálogo maluco. - Entendi quase tudo: Eu sou você hoje! Você é o fantasma da minha infância! É o que estou vendo na minha frente! -aquilo não me soou bem, mas era a única forma que eu achava no momento de expressar o meu espanto.
-Bingo! Só que não sou nenhum fantasma. Estou aqui, vivinho da silva...
-Mas eu não entendi uma coisa. Por que você me aparece só agora? Quantas vezes eu precisei aí de umas orientações...
- “Quando o discípulo está...”-ele começou.
- “...preparado o mestre aparece!”-completei. -Essa é velha! Conta outra! Vai dizer que é o meu Mestre. Daqui a pouco você vai dizer que eu atingi um certo estágio da minha lenda...
-Isso mesmo!... Lenda pessoal! -Não tive tempo de completar com mais detalhes o pensamento e fui novamente interrompido pelo pestinha: - Foi outra daquelas historinhas que você leu pra mim e que nunca levou a sério. Eu sempre estava lá no meu cantinho, atento, esperançoso. Como sua criança interior eu já não suportava mais ser ludibriado, mas não havia meio de romper essa barreira.
-Só por curiosidade: como conseguiu agora?
-Ora, você abriu a guarda. Acho que chegou a hora. Sua situação é crítica! E corremos perigo, você e eu!
As montanhas atrás do lago escureceram de vez. Fora o por de sol mais lento de toda a minha vida!
-Mais uma pergunta, pois sei que seu tempo está se esgotando...
-Faça logo! A tarde já se foi e não posso ficar mais...
-Qual o seu nome? - Me senti estranho por perguntar o óbvio. E fiquei mais desconcertado ainda com a resposta:
-Ilinx. Pode me chamar de Ilinx!
E a noite levou o menino com ela...
Postado anteriormente no Blog do profex: